uma carta aberta
de ursas menores e maiores
manô,
começo com essa liberdade descarada de um apelido que ouvi por aí de gentes que te conhecem, o que não é o meu caso, ou pelo menos não era até hoje. o motivo é simples, acabo de sair de uma sessão do “escute as feras”, adaptação teatral capitaneada por você mais fernanda diamant e mika lins – esta espécie de carta também se destina a elas.
o livro que deu origem à peça é, no meu percurso como tradutor, um objeto bonito e importante, mas com certa dureza dessas que a gente às vezes evita de ficar encarando quando cruza o olhar. foi a primeira vez que consegui emplacar uma proposta com uma editora, o que envolve vender o peixe no momento certo das negociações de mercado pra que o pessoal decida bancar os direitos, a tradução, todo o trabalho textual de revisão e preparação que vem junto, a impressão e a distribuição, ou seja, não é pouca coisa. além disso, entre algumas dezenas de títulos, foi meu trabalho com maior visibilidade e circulação e, cereja do bolo, hoje ele ganhou mais esse carimbo de peso, o de primeira tradução que vejo adaptada no palco. enquanto tudo isso acontecia, no que diz respeito à dureza, ele foi testemunha de uma desfiguração do meu afeto: quando chegávamos aos finalmentes do trabalho, rompemos, minha dupla e eu, de uma ruptura dessas bem feiosas e doloridas.
longe de mim querer equiparar isso com a experiência estarrecedora, transformadora, tão profunda que viveu a autora, nastassja martin, que relata tudo isso com tanta crueza, clareza, beleza, mais a pitada de ironia e o freio de mão algo solto na escrita. tudo parece comezinho quando posto ao lado do choque de sobreviver ao encontro com um urso nos confins da rússia, sob temperaturas que sequer consigo imaginar o que provocam e impõem, no meio de um trabalho de campo de antropologia que precisou ficar de escanteio por motivos óbvios.
prenhe desse pacote completo, cheguei ao teatro sozinho, meio suspeitando de que era uma situação importante, meio negando isso e fingindo que não era comigo. quase a grávida de taubaté, cobrindo uma bola gigante com um paninho fajuto enquanto esperava pra entrar na sala, naquele momento típico de ver e ser visto que é tiro certo pra me deixar suando, sem saber o que fazer com as mãos e as palavras. me pega como a gente pouco consegue imaginar do que acontece com os outros, da multiplicidade de experiências vividas só naquele dia pelas pessoas com quem cruzamos ali… quando finalmente vejo um par de rostos conhecidos, vou dar um oi desajeitado e toca o primeiro sinal – ufa.
não pretendo fazer aqui uma crítica elaborada do trabalho de vocês nem quero dar spoiler. vou só lançar uns comentários, como quem papeia saindo da peça: dá pra falar do trabalho de luz muito bem feito; da economia de elementos em cena que me é cara; do figurino enxuto com recortes sutis e muito precisos; do trabalho de toda uma equipe maior de criação e do teatro que fica impresso na experiência toda; de como você é uma atriz de mão cheia e se aproxima do tom muito específico da autora de um jeito ímpar; do assombro que sempre me causam os monólogos e seus performers (como vivem, do que se alimentam, como conseguem memorizar um fio tão comprido assim de texto?); da escrita e precisão do movimento no espaço; do trabalho de vídeo (o que é aquele filme da tv do hospital?); da prosódia tão elegante e fiel que entrega o texto com próclises e ênclises que escorregam gostoso que nem quiabo; da música que preenche e baliza o espaço...
mas foi você abrir a sua boca que um anzol fisgou a minha, me puxando pra dentro da encenação. entendi que estava começando ali uma experiência pessoal demais e inédita pra mim. revisitei meu repertório de sensações feito secretária de consultório médico deslizando pastas e mais pastas de fichas de pacientes depois daquela lambidinha na ponta dos dedos hábeis, coisa que certamente não se faz mais hoje em dia, pra me dar conta de que não, nunca tinha vivido aquilo mesmo não, senhora. as palavras iam sendo enunciadas e eu comecei a me ver de fora, fazendo escolhas textuais na escrivaninha meio apertada onde calhei de fazer essa tradução. o eliot diz: tentando aprender como empregar as palavras, e cada tentativa é sempre um novo recomeço, e uma diversa espécie de fracasso.
tá, tudo bem, pode haver essa lente do fracasso, a gente é mesmo um punhadinho deles e de cicatrizes, mas hoje o copo está meio cheio. te assistindo fui lembrando das escolhas de alguns termos, conseguia completar frases cá e lá numa reativação de memória de arregalar os olhos, fragmentos que não sabia ainda habitarem meu cerebelo. só que o sentido e a sensação não são de autoria, se aproximam mais do cavalo das religiões de matriz africana, veículo para a incorporação de uma entidade, que neste caso é o texto. um pouco como acontece às vezes na tradução e também em cena, quando você performa e é tomada pelo fluxo, percebendo os encaixes como se estivesse de fora ao mesmo tempo em que a presença atinge seu auge, gostoso demais.
foi dando aquele alinhamento de caça-níquel, cerejinha cerejinha cerejinha, pra captar que, em lugares distintos, partilhamos uma intimidade tácita e funda, a posição rara de ter passado muito tempo com a mesma coisa, o mesmo texto, que não pertence a nenhum de nós individualmente, e sim ao mundo. como na tríade maiúscula a se cumprir na vida: plantar uma árvore, escrever um livro (ou seria publicá-lo?), dar à luz um ser e, ouso acrescentar, parir uma peça debaixo de holofotes. lembrei do seu relato de que foi a maternidade que acordou a ursa dentro de você e tornou incontornável o encontro com as feras. fez sentido.
de arremate, já nas últimas contrações, ainda ganhei de brinde um daqueles momentos quando as bordas da tela de cinema desaparecem ou a quarta parede desmorona e você (eu), completamente imersa, fica com a certeza absoluta de que a pessoa em cena (você) estava de olhos imantados nos seus (os meus), bem no momento em que questiona sobre a hora agá do fatídico encontro: “mas você não olhou no olho dele, né? você olhou?”. touché, mise en abyme de nós, ursas maiores e menores, em uma sala de espelhos. fiquei ali de repente desnudado na primeira fileira.
depois disso tudo, ainda recebi um abraço generoso seu, ganhei uma carona, vi um velhinho enviado dos céus tocando flauta nas rampas da santa cecília e fui invadido por “what a feeling” enquanto esperava o metrô e começava a digerir tudo isso. pelo que só posso dizer mesmo: muitobrigado. vida longa à peça e à colaboração de vocês, torço pra que haja uma próxima, se os ventos assim desejarem.
deixo um beijo,
d.
*
pra você que chegou até aqui, fica o serviço:
escute as feras
até 11/12 (de 2025),
quartas e quintas, sempre às 20h
no teatro estúdio – rua conselheiro nébias, 891
& agora sim um spoiler: tem retorno ao palco previsto pro ano que vem!

